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Triste realidade

Moradores dormem ao relento na fila dos ossos em Cuiabá

No Estado que mais produz e exporta carne no Brasil, pessoas dormem ao relento sem saber o que irão comer pelos próximos dias

Publicado em 19/12/2021 às 10:18
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(Foto: Rogério Florentino/Yahoo Notícias)

Foi por volta das 3h da manhã que o idoso Alonso Egydio, 63 anos, chegou ao Atacadão da Carne, na periferia de Cuiabá, Mato Grosso, em busca de um saco com quase 3 quilos de ossos que sobram da desossa de boi.

No Estado que mais produz e exporta carne no Brasil, pessoas dormem ao relento sem saber o que irão comer pelos próximos dias.

Sem emprego por conta da idade avançada e do problema na coluna, Alonso Egydio decidiu arriscar a própria saúde e ir até o açougue.

(Foto por Rogério Florentino/Yahoo Notícias)

Na ocasião, conseguiu também a doação de uma cesta básica e panetone, que segundo ele, irão alimentá-lo por um mês, já que vive sozinho desde que perdeu a esposa para um câncer, há dois anos. 

“Faz tempo que eu pego ossos. De primeiro a fila era curtinha, agora que aumentou bastante. O pessoal tá precisando”, diz.

Desde que a "fila do osso" teve repercurssão nacional, o número de pessoas em busca de ajuda no estabelecimento vem aumentando a cada dia. Atualmente, um grupo tem acampado em frente ao açougue para garantir a doação das sobras de boi ou de uma cesta básica, que é feita ao menos uma vez no mês, a partir da ajuda de entidades beneficentes.

A proprietária do Atacadão da Carne, Samara Rodrigues de Oliveira, confirma que a procura pelos ossos aumentou. “Eu sofro muito, principalmente com o que eles estão fazendo ali. Eu peço por favor para que não durmam ali, mas eles vêm. [...] Eles enfrentam sol, chuva e frio”, conta.

Em uma das situações, já em casa após um dia de trabalho, Samara recebeu uma foto das pessoas que iriam dormir na fila para pegar os ossos no dia seguinte e ficou bastante abalada. “Eu comecei a entrar em desespero”, lembra.

Desde a fundação do açougue há dez anos, Samara afirma que fazia doações aleatórias. No entanto, com a pandemia, houve aumento significativo. As doações eram feitas três vezes na semana. Agora, Samara mantém todas segundas e quintas-feiras por conta do aumento na procura pelos ossos e por causa da logística e toda mobilização envolvida.

“Colocamos essa estratégia, mas vem aumentando o número de pessoas. Aqui tem pessoas de todos os bairros, tem de Várzea Grande [cidade vizinha], Pedra 90 [bairro localizado a 18 quilômetros], tem muita gente e um vai falando para o outro...”, conta.

Na mesma região onde está localizado o Atacadão da Carne, açougues vendem por R$ 10 o quilo do osso. Enquanto isso, a empresária doa cerca 1.500 kg para as incontáveis pessoas que passam ali. Ao mês, as doações ultrapassam oito toneladas. Se vendesse os ossos pelo mesmo preço da concorrência, Samara estaria lucrando quase R$ 100 mil.

“Não é fácil, eu dependo das minhas vendas que não está lá essas coisas, muito imposto. O que fizemos? Diminuímos os dias, agora é segunda e quinta, mas oscila muito. Quando não tem ossinho, eu pego carne escondido do meu marido e dou. Ou também completo com frango, só não consigo deixar ninguém sair daqui sem alguma coisa”, revelou, aos risos.

Foi o que aconteceu com o Odelo, 62, e Maria, 61. Eles são casados há mais de 30 anos, estão com vários problemas de saúde, não trabalham e não tem nenhum tipo de auxílio financeiro.

O casal soube da doação e foi pedindo carona em ônibus públicos até conseguirem chegar ao bairro CPA 2 por volta das 10h. Depois de muito sufoco, souberam que as entregas estavam ao fim. “Disseram que não tinha mais, viemos de muito longe, da região da Ponte de Ferro...”, lamentou.

Ao ver a tristeza do casal, Samara providenciou um pacote de ossos para que Odelo e Maria não voltassem para casa de mãos abanando.

A idosa Tereza Machado, 73 anos, é uma das beneficiadas pela ajuda da comerciante. Duas vezes na semana ela precisa de dois ônibus para conseguir chegar à fila dos ossos. A aposentada mora no bairro Pedra 90 e sai de casa 5h juntamente com uma amiga que possui problemas de visão.

“Faz um mês e pouquinho que começamos a vir. Descobrimos e entramos no barco”, brincou. “A gente sempre pede uma ajudinha para um e outro. Quando eu podia trabalhar, eu trabalhava na rua com sucata”, pontuou.

Insegurança alimentar

O sociólogo e professor de economia da Universidade de Mato Grosso (Unemat), Maurício Munhoz Ferraz, afirma que a fila para buscar ossos é um sintoma da insegurança alimentar, cuja camada mais carente da população, e base da pirâmide financeira, está submetida.

“As classes D e E são as que mais sofrem com o fenômeno da inflação, que corroeu o poder de compra de todas as classes sociais, mas com mais intensidade nessas classes”, explica.

Enquanto as pessoas padecem na fila dos ossos, o Estado com maior produção de carne e grãos do país, mantém sua produção com prioridade na exportação. “Com o dólar alto, as empresas exportam e o que "sobra" fica no mercado interno e por um preço alto, já que a referência é o dólar”, diz.

“A inflação tirou 10% do poder de compra da população no geral, mas na carne ela aumentou 70% em um ano. Ela saiu do cardápio da maioria da população pobre. A carne já não é mais realidade. As pessoas vão comprar o que dá. Essa chamada ‘mistura’ é sacrificada pela população mais pobre. Então quando alguém vê oportunidade de ganhar carne, ela enfrenta essa fila cada vez mais triste”.

Além disso, o economista pontua que o governo brasileiro incentiva esse modelo de negócio, por meio da Lei Kandir. “Mato Grosso deixou de arrecadar em 2021, quase 12 bilhões de reais. Além de tirar nossa arrecadação, você não estimula a industrialização e estimula a exportação. Se a base da economia é exportação, o que sobra para nós é resto”.

Conforme pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), o cenário de extrema pobreza vem se agravando.

O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil revelou que eram 10,3 milhões de pessoas em insegurança alimentar grave em 2018, passando para 19,1 milhões, em 2020.

Portanto, neste período, foram cerca de nove milhões de brasileiros a mais que passaram a ter, no seu cotidiano, a experiência da fome.

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